lovely head
Sete minutos. Tinha chegado à escola com 7 minutos de atraso.
Imaginou os olhos do Director por detrás das persianas verdes e a
frase reprovadora de sempre “Lá vem este caramelo atrasado, outra
vez!”. Desceu a rampa de entrada para o átrio principal, sentiu o
relógio a abaná-lo, “Despacha-te! Despacha-te!”, e o som de
trezentas vozes juvenis, desnorteadas . “Esta pasta só atrapalha e
a porra do casaco e esta chuva toda. Foda-se! Estou farto de aturar
esta merda”.
No átrio principal esperavam-no as gargalhadas fora de tom, os
jogos de pingue-pongue e os olhares góticos das adolescentes. “A
selva do costume” - pensou. As decorações de Natal penduradas no
tecto alto davam ao cenário um aspecto ainda mais surrealista. Anjos
e estrelas flutuando sobre suores de histeria e de desejo.
Desapareceu do cenário o mais depressa que pôde e encaminhou-se
para o segundo pavilhão. O caminho exterior era desabrigado e a
chuva não lhe dava tréguas. “Os gajos que projetaram esta merda
deviam pensar que estavam em África.” Abriu a porta do pavilhão
com uma pancada forte, mais por desalinho do que por convicção.
- Bom dia, professor! – A voz assalta-o por entre placards
preenchidos com desenhos infantis e posters de Ecologia.
Espreitou expectante à direita, por detrás da imagem do lince
ibérico, e encontrou os olhos espinhosos da D. Angelina, a
funcionária sentada à secretária, roendo a maçã do costume. “Só
me faltava a merda do Bugs Bunny!”
- Bom dia, D. Angelina. Como está?
- Já estão todos na sala 21 à sua espera, professor. “E o Elmer
Fudd está à tua espera debaixo da secretária para te dar um tiro
nos cornos” - apeteceu-lhe dizer. Mas, entrar na sala de reuniões
talvez fosse mais apropriado.
- Obrigadinho, D. Angelina. Obrigadinho!
Seguiu pelo corredor do lado esquerdo, onde deu com a porta da sala
21. Inspirou profundamente antes de entrar. O fluxo de oxigénio
ajudava-o a relaxar. Do movimento que abria a porta, saltou o
desalinho em que se encontrava. Uma manga vestida, outra pendente, a
pasta aberta com metade dos documentos encharcados, e as botas
carregadas de lama. “Terei a braguilha aberta?”. Apeteceu-lhe
espreitar dissimuladamente para baixo, mas decidiu aceitar a sua
condição. No turbilhão de pensamentos, e com a sala carregada de
reprovação, não encontrou o que dizer e optou pelo silêncio. Com
o olhar, percorreu as carteiras posicionadas em forma de U, à
procura de um lugar. Respirou de alívio ao descobrir um espaço
vazio ao lado da Isabel. “Pelo menos calharam-me as mãos da
Isabel. Podia ter sido o bigode pré-histórico do Alfredo ou o
penteado lambido do tarado do Sérgio. Mas calharam-me as mãos da
Isabel.”
- O que é que perdi até agora? – perguntou-lhe sem convicção.
- A conversa do costume – sussurrou Isabel, com um sorriso
cúmplice.
- Vá lá! Pensei que tinham decidido encerrar as escolas do país,
atirar com os dossiês pela janela e revolucionar esta porcaria toda.
E eu que não estava presente. Que desperdício!
O bigode pré-histórico levantou a voz, nitidamente para o mandar
calar. Isabel passou-lhe uma revista com uma pequena nota: “Deixa
lá, para a semana, vais arrasar!”. A revista vinha aberta na
página das previsões astrológicas, com o signo de Escorpião
destacado com um círculo desenhado a vermelho. Isabel sorriu de
novo. Olhou para ela e franziu o sobrolho. “A sério?”. À falta
de melhor entretenimento, decidiu ler.
“Na semana festiva que se aproxima, os nativos de Escorpião
poderão sentir-se um pouco nostálgicos. No entanto, sobretudo para
os nativos do sexo masculino, há boas perspetivas de um encontro
impactante com alguém do sexo oposto. Mas, se não gosta de
crianças, talvez seja melhor esperar um pouco. É provável que essa
pessoa já tenha algum filho. Procure divertir-se. Tudo indica que,
depois de um período de alguma incerteza, se aproxima um bom ano.”
Levantou os olhos, sorrindo.
- Tu não tens crianças, pois não?
Isabel retribuiu-lhe o sorriso.
- Parvo.
Ele sabia que gostavam um do outro, mas tudo não passava de uma
saudável relação de trabalho. Pela janela conseguiu ver um melro
que levantava voo, indiferente às intempéries do mundo. “Amanhã,
não estará ninguém à minha espera!” - pensou. Este pensamento
trouxe-lhe alguma tristeza, mas também a sensação de liberdade
pura.
O dia seguinte amanheceu cinzento. O ar prometia neve. Numa floresta
distante, uma corsa caminhava por entre as árvores com a sua cria.
Levantou-se com vagar e espreitou o frigorífico, assobiando
alegremente. Aquilo que os astros impusessem não faria qualquer
diferença. Chuva, neve, encontros impactantes, nada lhe tiraria a
boa disposição. A história do encontro impactante deu-lhe vontade
de rir. Preparou uma omelete, acompanhando-a com sumo de frutas.
Cortou as fatias de pão meticulosamente, aqueceu-as na torradeira e
barrou-as com a sua compota favorita: laranja amarga. Sentou-se
demoradamente, saboreando o prazer dos minutos que passam sem
reclamar. Abriu o mapa. “Tanto faz. Que se lixe a merda dos
planos!”. Sorriu com prazer. “Que se lixe a merda dos planos!”,
repetiu em voz alta. Fechou o mapa e atirou-o para a gaveta. Preparou
um café e aproximou-se da janela para apreciar a cidade ainda por
despertar. Apenas um cão vadio circulava pela rua, escanzelado e
triste. “Não vais longe, camarada, não vais longe.”. As árvores
despidas serviam de invernadouro às aves mais corajosas. Tomou um
duche demorado, deixando a água correr livremente pelas costas em
jeito de massagem. Preparou um pequeno saco de viagem com roupas de
inverno, alguma música, os documentos necessários, e desceu,
tranquilo. Na garagem, sentiu orgulho pelo carro desportivo branco,
apenas com um mês de rodagem.
- Vamos lá dar uns quilómetros a esta máquina! - O ruído do
motor deixou-lhe a sensação de poder e um sorriso aberto. Partiu.
Ligou a aparelhagem de som e foi acompanhando as estações de rádio,
primeiro em Português, depois em Castelhano, Francês, Alemão, que
não entendia, mas cuja sonoridade sempre o seduzira. Desfrutou de
uns quantos restaurantes e hotéis de estrada, simples, e de uma
profunda sensação de liberdade. Apreciou o facto de não conhecer
ninguém naqueles lugares, de não ter um plano, um horário
definido. Voltou a parar num restaurante perdido. Apontou para um dos
pratos da ementa e bebeu uma cerveja enquanto esperava. Naquele
momento, decidiu aumentar o poder da sua liberdade. Comeu com vagar,
saboreando a refeição. Terminou-a com uma sobremesa demasiado doce
e um café de má qualidade, mas não reclamou. Pagou a conta e
dirigiu-se à casa de banho. Passou água pelas mãos e pelo rosto,
tirou o relógio do pulso e deixou-o no lavatório. “Já não
preciso mais de ti”. Voltou à estrada. Não iria ouvir mais rádio
nem voltaria a olhar para as placas com a toponímia. Não lhe
interessava para onde ia nem por onde passava. Mudou aleatoriamente o
horário do relógio do carro. “Agora sim, liberdade!”. Foi
colocando os CDs ao sabor da sorte, de acordo com o que se entalasse
primeiro entre o indicador e o polegar.
Aproximava-se a noite. Fartou-se das auto-estradas e optou por virar
numa estrada secundária. Novo CD: “Goldfrapp – Felt
Mountain”. O caminho era agora ladeado por um renque de
árvores, depois, uma floresta a perder de vista. A intervalos,
adivinhavam-se espelhos de água. O carro vai-se movendo ao som de
“Lovely Head”. Baixa o vidro, fecha os olhos. Caem os
primeiros flocos de neve.
Nessa floresta distante, a corsa e a sua cria atravessam a estrada. A
corsa fica estática, encandeada pelos faróis do carro veloz.
Ouve-se música. Depois, o estrondo do embate. A cria foge. A estrada
fica manchada de vermelho-sangue, em contraste com a alvura da neve.
Uma enorme tela branca com um longo traço cinzento e vermelho. A um
canto, o corpo de um animal despedaçado. Mais à esquerda, uma
amálgama de metal ensanguentado, a cabeça do animal, os seus olhos
esbugalhados, uma roda que gira cada vez mais lenta, até se ler...
Goodyear.
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